sexta-feira, 27 de novembro de 2009
Todos os tempos
nas minhas entranhas rufam no agora
todos os tempos,
[por falar em Tempo, peço a sua benção].
Como instrumento esculpido por mãos negras,
meu corpo arfa, arpeja
no silêncio:
tempo, tempo, tempo.
Tempo, tempo, tempo
Entre as galerias do Tempo
E, para sobreviver, deriva
ao olhar-tatuagem do Outro, que me fixa
atento.
terça-feira, 17 de novembro de 2009
Veroficcionalizações
Escrito com o próprio corpo
Nas páginas do tempo...
quinta-feira, 12 de novembro de 2009
Yes, we can!
O poeta Damário Dacruz disse em um poema, certa vez, que “a possibilidade de arriscar é que nos faz homens”... O complexo jogo demasiadamente humano dos poderes reside no poder como “permitir” ser, no poder como “força” e no poder como “possibilidade”, todas estas instâncias negadas em diversas esferas aos pobres e pretos do país. O sorriso, o fuzil, a doença e o aperto (de mão) são, pois, fruto da mesma cordialidade perversa que deseduca e mata, provocando genocídios já naturalizados ante nossas retinas. Então, como poder?
A descoberta de Obama, como afroamericano, da possibilidade no jogo presidencial estadunidense é sintoma desse marco significativo na história de qualquer sujeito, sobretudo daqueles que tiveram historicamente sua capacidade e sua força negadas.
Hoje, vi jovens que tive o prazer de orientar junto com outros professores despertarem para a possibilidade e, no ímpeto silencioso do conhecimento de um átimo de seus próprios poderes, repetirem com Obama: Yes, we can. A força gólica que emerge desse gesto quase pueril é algo que não se pode mais conter, daí a quebra desses grilhões subjetivos poderão levar esses garotos e garotas simplesmente aonde eles quiserem. E eles se deram conta disso.
Quando olho nos olhos juvenis desses meninos e meninas negros na universidade, repito um pouco para mim mesmo, como educador, que ainda é possível. Sim, ainda é possível, Yes we can...
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
Minha Ítaca
Entre curvas e nós, há 11 anos, as mesmas mãos hábeis tecem-me entre a linha e o pano. Como sou insônia e silêncio, habito o hiato de cada pequeno gesto de espera, para retornar a cada manhã, como Outro, e, inesperadamente, tomar de assalto, a minha Ítaca.
domingo, 18 de outubro de 2009
Futuro ou Museu de grandes novidades
“Helicópteros rodopiam no céu, ao longe, agitando as águas mortas da lagoa. Francisco Palmares espreita-os através da lente do binóculo... Vê-os acometerem contra o Morro da Barriga, ali mesmo, onde os últimos revoltosos buscaram refúgio. Àquela velocidade estarão sobre eles, a cuspir fogo, em poucos segundos... Então, um uivo luminoso risca o azul puríssimo da tarde numa curva elegante e atinge o primeiro helicóptero. A explosão torce o céu, estende-o, contrai-o, sorve violentamente todo o ar, arrastando duas aeronaves que seguem atrás. Um dos aparelhos consegue recuperar o equilíbrio. O outro, porém, mergulha às cambalhotas de encontro aos prédios aguçados, lá muito em baixo, e desfaz-se – desfaz tudo ao seu redor – num grande e prolongado ribombar das chamas”.
Todas as vezes que a literatura antecipa-me o viver, no corpo carrego a náusea entorpecente de todo o devir.
sábado, 10 de outubro de 2009
O retorno de Ulysses
sexta-feira, 31 de julho de 2009
Sonho ou torta de chocolate, tanto faz!
E eu sou todo esquecimento
Há esquecimentos que me devoram, daí sou só sonho
Só, sonho que sou só esquecimento,
Aí devoro-te
quarta-feira, 29 de julho de 2009
A morte do autor ou reescrevendo o poema
Ah! Segue o link para matar a curiosidade: http://www.youtube.com/watch?v=JuWKofWC36Q&feature=channel_page
segunda-feira, 13 de julho de 2009
Confissões kafkianas
quinta-feira, 9 de julho de 2009
Moonwalker e estudos de gênero
A palavra é uma arma incomparável, mas há algumas ações que, além de intraduzíveis, são de uma eficiência ímpar, pois desarmam qualquer discurso... E é sobre isso que falarei brevemente hoje: O que fazer para dissuadir um interlocutor sexista, racista, ou qualquer outro ista, quando se esgotam os argumentos e a paciência ante as evidências de suas ações preconceituosas? Uma colega professora, após reincidentes investidas de um estudante em sala, através de comentários marcadamente machistas que, inclusive, buscavam desqualificá-la, “perdeu a cabeça”. Sob o fundo musical psicológico do rei do pop, olhou fixamente o estudante e, em plena classe, não se deu nem ao trabalho de tentar interrompê-lo, já que ele sempre falava mais alto quando ela tentava fazê-lo: pé-antepé, ela apenas flanou tal qual Michael Jackson sob os olhos atônitos da turma inteira que, incontida, começou a rir convulsivamente deixando sem graça o estudante machista que, toda vez que pensava em intervir com seu discurso falocêntrico, temia ver outra vez a professora, um pouco acima do peso diga-se de passagem, fazendo o Moonwalker, expondo, através do próprio corpo, o ridículo das intervenções daquele sujeito.
quarta-feira, 1 de julho de 2009
O guardião das Letras
Entrei na graduação da UFBA em 1998 e ele já estava lá, na porta do ILUFBA, a meio caminho de Tebas com seus livros-enigmas, lançando o desafio aos transeuntes por meio das capas duras das edições luxuosas da Aguillar: “decifra-os ou devoram-te!”. A Esfinge sabe-se guardiã de caminhos que só existem na sola dos pés dos viajantes... Seu Evilásio também sabia-se, sob sua alegria soturna, tal qual um gárgula, guardião de templos e de tempos.
Hoje, recebi a notícia da morte de Seu Evilásio que já andava bastante doente. Confesso que me entristeci, pois desconfio que, às vezes, até mais que vender os livros, ele adorava conversar sobre eles com uma intimidade de quem os punha no colo toda noite a niná-los com histórias lidas de outros e de outros e de outros livros, tecendo mil e uma noites de sonhos para cada página.
Nestes 11 anos de convivência com Seu Evilásio, como carinhosamente o chamava, entre cheques pré-datados e aquisições de livros em confiança “para pagar depois”, erigi minha muralha indestrutível e intransponível com simples blocos de papel.
Apenas a voz deste homem continua, ainda agora, tonitruante, a assombrar minha fortaleza, ao apontar para as fissuras que ainda há nas paredes:
“você já viu a coleção nova que saiu?...”
terça-feira, 23 de junho de 2009
A cicatriz de Ulisses
O silêncio é minha Ítaca. Enquanto o orgulho troiano põe por terra as invencíveis muralhas, eu, Odisseu, tramo em naus frágeis, onde não perscrutam os deuses, o meu retorno.
O silêncio é minha Ítaca. Nele, habita a cicatriz que sangra a serva, ao saber-se sob os pés de seu rei.
O silêncio é minha Ítaca. Nele, vergo o meu arco, mato, marco Cronos.
O silêncio é minha Ítaca, nele, meu trono.
sexta-feira, 15 de maio de 2009
Perpétua
e o abismo onírico sem fim,
a insônia é o cárcere sem grades
que aprisiona o homem
por dentro...
quarta-feira, 6 de maio de 2009
Notivagações ou Palavra ex-cripta
aguarda...
Embora o papel já saiba,
o autor sequer desconfia
do que (ou)virá na página
sexta-feira, 1 de maio de 2009
O céu de Ícaro ou o mar de Ulisses?
Paralamas do Sucesso
-Ulisses, você é um covarde! - diz Ícaro, anjo gauche caído, frente a frente com seu adversário.
-Como? – retruca Odisseu, em tom desdenhoso.
-COVARDE! – repete enfaticamente Ícaro.
O rei de Ítaca sequer digna-se a respondê-lo. Acredita-se invulnerável a tamanha afronta ao evocar em seu pensamento a grandeza do seu reino, bem como seu feito hercúleo em Tróia, quando com um cavalo de madeira, seu artifício, fez dobrar as muralhas intransponíveis... No sabor do silêncio que só os nobres podem degustar, recorda-se do desafio a Poseidon e das desventuras passadas para retornar a Ítaca, mas conclui: consegui.
Ícaro, ante a soberba do adversário, o ultima:
- Rei de terras invisíveis, de certezas épicas naugrafadas em versos rijos por um aedo imaginário que te inventou... Prisioneiro ingênuo de um cárcere cíclico: jamais saístes de Ítaca, por isso tens a fraca ilusão de que retornastes. Tolo!
Intrigado, Ulisses teme ver ruir o templo em que se erigiu seu trono e mostra-se, agora, atingido por seu interlocutor:
-Por que dizes isto? Que te fiz?
-Aprisionastes o Ocidente a uma nau norteada por sonhos de retorno, de saudades, por receio de perder-se e refazer-se noutros reinos. Em ti nasce o medo que busca a ancoragem vã da comodidade cotidiana, em vez da deriva. Em ti, apenas certeza, só, sempre, o mesmo...
-Verme suicida. Que valor tem tuas asas frágeis, rotas? Que fez tu dos conselhos de Dédalo já que no ludismo inconsequente de querer aproximar-se mais e mais do sol, pôs-te tudo a perder? – gargalha Ulisses, crendo ter ferido ainda mais seu oponente.
-Caro Odisseu, nunca verás o que meus olhos, hoje cegos pelo sol viram, ainda que por um instante, porque tua covardia só te permite navegar por águas demarcadas pela certeza náutica de rotas conhecidas... Apesar de minhas asas frágeis, tua nau é que sempre fora de cera e teu reino, nunca exposto, estivera por todo tempo submerso, pois te curvastes aos deuses para cumprir a sina pedagógica das epopéias em tua ânsia de retorno... Tua história, sem o canto do bardo invisível, teria sim a exata dimensão da paralisia de suas in-ações, herói trôpego de glórias imaginadas por um velho inexistente...
-Dá-me então tuas asas de cera! – suplica então Ulisses.
-Não são as asas que proporcionam o vôo, majestade – diz, circunspecto Ícaro -, mas o desejo que não se constrói apenas com mãos de artífice, é preciso da coragem suicida de utilizar-se de asas sensíveis a força térmica do sol, para que ainda que se faça um único vôo, se possa traçar outras rotas mesmo que o abismo esteja sempre próximo. Quando tiveres força suficiente, apenas fazes do teu mar espelho do meu céu, e erra por entre as vagas que quiserem te afogar como quem busca fôlego para sobreviver, aí voarás.
quinta-feira, 23 de abril de 2009
Derivações
Hoje, tenho toda a pressa do mundo, não para chegar, mas para ficar à deriva, tal qual Pessoa em sua imprecisão lírica (Navegar é preciso, viver não é preciso): cisão náutica da morte pelo tempo, cisão da vida tal qual nau precisa orientada pelo vento.
quinta-feira, 16 de abril de 2009
quarta-feira, 15 de abril de 2009
Dulcência
Tornei-me professor por um erro etimológico: achei que a palavra docência vinha de doce, da essência do “ser doce”... Viciado em chocolate e outras guloseimas açucaradas, abandonei os computadores e conduzi a minha vida em busca desse sabor. Sabor que às vezes dilui-se um pouco na rotina acadêmica entre tantas tarefas que me afasta, diabeticamente, do que sempre leva minha glicemia às alturas, sem, no entanto, nunca me fazer mal: a sala de aula...
domingo, 12 de abril de 2009
Amnésio
A ????????
Filha de Urano e Gaia, Mnemosine é a deusa da memória, aquela que preserva os seres do esquecimento (acho que é isso, se me recordo bem)... Se a lembrança é uma dádiva, em demasia, ela torna-se um mal, pois a hipermemória destrói qualquer possibilidade de convivência social, uma vez que o recordar contínuo põe a nu a própria fraqueza e as fraquezas alheias. Por outro lado, a ausência completa de lembranças, ou a incapacidade de armazená-las, também configura-se como outro problema não menos grave... Eis aí a minha punição mítica: a hipomemória. Já fui a médicos, já fiz exercícios específicos pra reforçar a minha capacidade para lembrar, já comprei uma agenda (mas sempre me esqueço de anotar as coisas e pior: me esqueço de consultá-la), já me desesperei com isso, mas, com o tempo, descobri que esse mal traz desvantagens, mas também muitas benesses... Ao mesmo tempo em que não me lembro das rotas no trânsito (canso de sair e esquecer para onde vou), de onde coloquei as chaves (acho que esse objeto deveria ser extinto da face da terra, em face de sua capacidade de ocultar-se), a carteira, as meias etc, também esqueço-me facilmente das ofensas, de coisas ruins, dos motivos que desencadearam brigas (minha esposa diverte-se quando algumas horas depois de alguma discussão, eu sorrio, começo a brincar e depois pergunto a ela: - acho que havíamos brigado, eu estava zangado com você, qual foi o motivo mesmo? óbvio que depois disso rimos e eu dificilmente recordo outra vez o que realmente aconteceu)...
Ah! tentei por exemplo escrever este texto algumas vezes, mas advinhe: sempre me esquecia quando sentava-me em frente ao computador...
Filho bastardo da deusa Mnemosine, sigo com meus esquecimentos constantes... Aliás, o que era mesmo que eu ia colocar aqui no fim do texto?
sexta-feira, 3 de abril de 2009
Corpus Christi
Os meus olhos míopes, sem óculos (exigência daquilo que teoricamente seria um personagem), viam com tamanha nitidez que não desejo nem aos que me odeiam tal dádiva. Ouçam: ao homem é dada a dose certa de miopia para que ele sobreviva, pois ver com acuidade, em demasia, é estar sempre a mercê das paisagens insólitas que vão se tecendo sob os olhos e que cegam pela luz.
Como já disse, jamais faria esse “papel” outra vez: já crucificado, olhei de cima e vi minha mãe, também uma Maria, dentre a multidão, seu sofrimento não era cenográfico, suas lágrimas um oceano de ausências, seu olhar fúnebre velava um filho que des-nascia publicamente pelas faltas alheias. Àquela altura a minha dor não era interpretação... A solidão mais árida trespassou meu corpo na lança do soldado. Só, só, só, a-b-s-o-l-u-t-a-m-e-n-t-e só, não imaginava beber gota-a-gota aquele cálice. Ao fim da madrugada, minha voz foi um grito tão intenso que despertou o sol no horizonte e o público que acompanhava a via crucis petrificou-se com a “interpretação” tão perfeita e emocionante daquele jovem que, na verdade, desesperado, sofria, pensava em sair dali e já questionava sua própria fé: - MEU DEUS, MEU DEUS, POR QUE? POR QUE? POR QUE ME ABANDONASTES?
A casa de farinha
Herdei nome e pele de meu avô: Henrique. Ah! E também um pouco de sua carrancice sem hora marcada. A minha lembrança mais gostosa dele é a de uma Casa de Farinha que lhe pertencia mais afetivamente que de posse. Recordo-me de eu e meu pai o visitarmos no interior e depararmo-nos com meu avô, o alquimista, produzindo a maior invenção do homem em todos os tempos (ao lado do café, é claro): a farinha de mandioca.
Alguns homens erguem mansões para si, outros adquirem (auto)(i)móveis de luxo. Meu avô, com suas mãos obstruídas pela idade, erigiu uma Casa de Sensações para os seus. Os cheiros e sabores de sua alquimia ainda me entranham as narinas e repousam no meu paladar. Seu corpo físico, como a Casa de Farinha, demolido e sepultado pelo tempo, habita-me.
quarta-feira, 1 de abril de 2009
Filosofia Clichê e Fórmula 1
Para sobreviver, muitos de nós precisamos "lançar mão" da filosofia do kers: todos obstáculos, impossibilidades, negações não devem ser dispersadas, sua força de frenagem quase paralisante sobre as nossas vidas devem ser acumuladas e devolvidas em igual intensidade para projetar o carro de nossa existência, volta a volta, ao pódio. Como intelectual negro oriundo da perifa ainda uso um kers antigo, construído com as mãos artesãs de meus pais, que, na impossibilidade de darem-me um carro veloz, doaram-me seus pés calejados "pra mode" eu andar pelos atalhos dos trilhos rumo ao sucesso.
terça-feira, 31 de março de 2009
Sobre a fé
Tenho uma irmã que sua sede de vida era tanta que, ao nascer, matou, no parto, sua mãe biológica. A vida é mesmo essa crueza bela cuja força de existência é capaz às vezes de subsumir tudo ao seu redor para apenas “ser”.
Sem o amparo maternal e paternal (neste caso por outros motivos), minha avó a trouxe do interior para Salvador, a fim de que ela fosse tratada (hoje tenho a convicção de que ela planejava que adotássemos minha irmã, o que terminou por ocorrer), já que nasceu muito doente. Os médicos, no entanto, sentenciaram sua morte inescapável, que ocorreria, na melhor das hipóteses, em semanas. Ignorante e sábia, como era minha avó, ela não leu os laudos médicos, recusou as determinâncias científicas e, contrariando o ceticismo consensual acerca da vida daquela criança, ela sentenciou através de sua fé: -Você vai viver!
Hoje, após tantos desentendimentos com minha irmã por suas travessuras, compreendo melhor a sua dor existencial de um nascimento homicida que atravessa a carne, dilacera o espírito e não sara facilmente em uma só vida, apesar da acolhida que teve no seio de minha família...
Hoje, nos olhos de minha irmã caçula, minha rosa (com todos os seus belos espinhos), vejo refletida a fé que lhe deu vida. Fé que invejo e para alcançá-la preciso desaprender muitas coisas, para crer sempre que é possível intervir no curso do rio, apesar do fluxo caudaloso das águas.
segunda-feira, 30 de março de 2009
Eu Soul
Hoje não há texto. Seal sussurra em meus ouvidos “Kiss from a Rose” e eu sou apenas som, sou apenas soul, Eu Soul.
Se alguém ainda duvida, acesse o link abaixo e diga-me se não é possível ouvir um silêncio tonitroante que é a beleza mais simples e como silêncio não se traduz em morte:
sábado, 28 de março de 2009
Desabrigo
Há dois anos, alguns dias por semana, durmo na rua. Explico: minha casa são os braços de uma mulher que viaja sempre e leva consigo os bons sonhos que me ninam feito criança na madrugada... Apesar de alegar amar-me sem restrições, ela furta sorrateiramente o travesseiro onde repousa minha cabeça, expondo-me a apnéias e pesadelos abissais. Desabrigado, vou habitando palavras natimortas repletas de ausência, enquanto aguardo o seu-meu retorno para casa.
quinta-feira, 26 de março de 2009
Reles-ato biográfico ou "Onde os fracos não têm vez"
Ri sozinho esta noite, ao lembrar-me não sei se do ridículo da briga, muito distante da construção grandiloquente no parágrafo anterior ou da vergonha desta mancha em meu currículo escolar, agora, quase, ilibado. Para as mentes mais férteis que aguardam a narração de guerras épicas a la Homero, ou as contendas monumentais presentes nos bons filmes do Ridley Scott, ou ainda os efeitos especiais high tech da batalha entre Neo e Sr. Smith (Matrix), lamento decepcioná-los: a briga, longe da crueza e tenacidade de qualquer Pulp Fiction, faria rir o personagem insólito do programa baiano Na Mira que, quando evocado pelo apresentador, grita: “Socorro, meu Deus, eu não quero morrer”.
Tudo, absolutamente tudo, não passou de um empurrão. Xingado por um colega mais velho e muito mais experiente em questões de pelejas, irritado até o último limite, o atingi de forma certeira e o deixei desnorteado, já que nem ele, nem ninguém na turma, esperava a minha reação em plena sala (quando a professora de matemática saiu para fazer não sei o quê): -É a sua mãe! -falei com a entonação de um vate e a coragem de quem sabia que não seria agredido em plena sala. Passado o primeiro momento de surpresa, também fui golpeado pelo imprevisto: -Te pego na saída, ao que retruquei “mentirosamente”: - Não tenho medo de você.
Aviso:
quarta-feira, 25 de março de 2009
Tempo-Rei
Por isso, cedo ensinaram-me a abaixar a cabeça ao passar por sua tenda e sequer olhar em seus olhos. Na sua íris, dizem os entendidos, a ira de todas as eras que acelera os grãos de nossas vidas.
Respeite Tempo. Tome a sua benção ao aproveitar cotidianamente as horas que Ele, generosamente, te dá (ou te tira), pois Tempo virá...
Quando me esqueço de Tempo e fico a passá-lo na imobilidade de coisas vãs, Tempo me passa e meu corpo é pó: nauseio-me de ausências.
segunda-feira, 23 de março de 2009
Educação pela palavra
Certa vez cortei-me empunhando a palavra. Em seu manual de instruções, a advertência veemente: “uma faca só lâmina”. Não apenas sangue correu de minhas veias... A palavra coagulou as dores de ontem e as que ainda um dia sentirei, escoando no vão da ferida aberta.
Hoje, desconfiado do gume afiado da palavra, apenas insinuo manipulá-la, finjindo não sabê-la cortante, para quem sabe empunhá-la nas mãos de outros que também sangrem (é preciso sangrar para que o sangue corra fora do curso!), permitindo-me assim singrar os sentidos por entre cicatrizes.
terça-feira, 17 de março de 2009
Ser e estar na madrugada
Na madrugada “gosto de ser e de estar”. Nela, o silêncio ata-me e habita-me, com o maior medo do homem: o mutismo ensurdecedor de sua legião interior, ou seja, como diria Freud, do seu unheimilich (o estranho, íntimo e extremamente familiar que nos constitui, ainda que recalcado, e projetamos em outrem).
Nesse mar abissal de manto escuro, naufragam todas as nossas rotas em um espelho anti-narcísico e contrário aos nossos desejos que nos levam a lugares ignotos, inesperados.
“Ser-e-estar na madrugada” também é cuidar de si, compreendendo que na madrugada toda ira, todo amor, toda lira, toda dor é absurdamente presença no silêncio de um amanhecer que sempre virá, ainda que tarde o dia.
A madrugada chega para anunciar, às vezes, que não, não agora, ainda não é tempo-já de dormir, pois viver é, sobretudo, estar à deriva.
sexta-feira, 13 de março de 2009
Ogã
que me embriaga,
e os machados que carrego por Outro,
meu corpo serve a Justiça
na casa de meu pai
Erguido,
descubro-me zelador do chão em que piso
e dos pés sagrados
que no barracão
escrevem seus caminhos.
quinta-feira, 12 de março de 2009
O café que me toma
Sábia, como era, apesar de ser chamada de analfabeta (o que são as letras para quem se comunicava com o corpo, para quem escrevia sua vida nas folhas, não as de papel, com as quais operava verdadeiros milagres entre chás, rezas e remédios caseiros), ela não reencarnou no pó, mas no aroma da cafeína exalada um ponto antes da fervura da água (o segredo de um café perfeito) impregnando minhas narinas, meu corpo, minha alma...
Hoje, não mais à tarde como nos tempos de escola, quando preparo meu café noturno, sou tomado pelo torpor sinestésico de sua materna (oni)presença. Tentado, não resisto e peço a sua benção antes de dormir como nos tempos de outrora: -Deus te abençoe.
quarta-feira, 11 de março de 2009
Black Alien: rap e surrealismo
Um rapper brasileiro, ex-integrante da banda Planet Hemp, em um gesto freudiano de reversão do tabu em totem assumiu para si a condição de alienígena, autodenominando-se Black Alien. Na impossibilidade de inverter a marca estereotípica que repousava sobre seus caracteres corpóreos (nesse caso fenotípicos), em um jogo escópico ao qual estava submetido e que o fixava desde criança como diferença inferiorizada, esse músico põe em suspenso a designação pejorativa que o afligia, e, claro, as atitudes que como conseqüência vinham com ela, para assumir-se de forma reversa como, assombrosamente, O Outro. Vale salientar aqui a força desconstrutora dessa ação sofisticada que convoca os espectros do unheimlich, possibilitando que esse sujeito se desconheça, para, só assim, lidar com toda a força que produziu em sua vida um poderoso recalque de seus traços étnicos em seu processo de subjetivação e que, agora, como o estranho freudiano, emergem aparentemente como des-conhecidos.Como o surrealista René Magritte provoca a fissura em seus quadros entre as palavras e as coisas, esse rapper grafa, grifa e grafita sobre o corpo a mesma senha que obriga o observador de arte a suspeitar da representação pictórica que ele crê ver nas telas do pintor belga. Em um quadro de Magritte, por exemplo, que traz a imagem de um cachimbo (?) seguido da inscrição “Ceci nést pas une pipe” (Isto não é um cachimbo) o pintor desafia de forma suicida a própria representação, ainda esta seja o sustento de toda uma teoria mimética legitimadora das artes desde Aristóteles. Ora, tanto no gesto do pintor quanto do rapper, a provocação repousa na desconstrução da lógica do sentido, a qual, através de sua relação imediata, aparentemente natural, entretanto etnofalologocêntrica, aprisiona os sujeitos a formas prévias de significação, nada neutras, diga-se de passagem. É contra essa mesma força paralisante e perigosa que se erige boa parte dos escritos de Giles Delleuze, Michel Foucault e Jacques Derrida, só para citar alguns dos chamados filósofos da desconstrução. Ambos os procedimentos, o de Magritte e o de Black Alien, exigem a deseducação de um sistema tradicional de deciframento para que o quadro e mesmo o nome do rapper possam, libertos, enfim funcionar como uma superfície plurissignificante. Em suma, não há desafio mais dilacerante na contemporaneidade do que assumir-se como O Outro, pois o alien, acima de tudo, é aquele que está alheio a, que escapa a toda uma lógica de normalização do olhar, do corpo, transitando fraturado por entre suas identificações fluidas… O alien não pode ser facilmente aprisionado, nem completamente entendido (ele está fora de si) e eis aí a sua potência como alteridade, a qual, mesmo que, muitas vezes, silenciosa, rasura de forma interminável a superfície invisível das relações sociais e de um sistema ortodoxo de construção do saber. Além disso, ele representa, indubitavelmente, o maior desafio para a humanidade, ainda que não “seja” demasiadamente humano, ou não seja historicamente construído como tal…Como educadores, creio que o nosso maior desafio não se coloca apenas em amar o alien (entenda-se por alien toda a alteridade, ainda que aqui eu esteja destacando apenas uma dessas formas alienígenas), mas sim em compreendê-lo na e contra a paisagem gris em que ele se soergue. Tarefa, com certeza, nada fácil, para nenhum de nós.