Convidado pelos colegas de um grupo de jovens, uma vez “representei” Jesus Cristo na via crucis. Jamais faria isso outra vez: o peso físico da cruz verídica na qual fui suspenso foi ínfimo ante as dores que via nos olhos das mulheres e homens ao meu redor. A genuflexão diária ante patrões e patroas abriam feridas não só nos joelhos daqueles homens e mulheres, mas em seus corpos gangrenados por uma sobrevida diária que realmente só a fé poderia ainda pô-los de pé. O que era para ser uma representação, tornou-se um drama, principalmente para mim. Cristo, ironicamente, resolveu naquele dia partilhar comigo, um pobre adolescente de 16 ou 17 anos, seu cálice. Disse-me: -Tomai e bebei, este é o meu sangue...
Os meus olhos míopes, sem óculos (exigência daquilo que teoricamente seria um personagem), viam com tamanha nitidez que não desejo nem aos que me odeiam tal dádiva. Ouçam: ao homem é dada a dose certa de miopia para que ele sobreviva, pois ver com acuidade, em demasia, é estar sempre a mercê das paisagens insólitas que vão se tecendo sob os olhos e que cegam pela luz.
Como já disse, jamais faria esse “papel” outra vez: já crucificado, olhei de cima e vi minha mãe, também uma Maria, dentre a multidão, seu sofrimento não era cenográfico, suas lágrimas um oceano de ausências, seu olhar fúnebre velava um filho que des-nascia publicamente pelas faltas alheias. Àquela altura a minha dor não era interpretação... A solidão mais árida trespassou meu corpo na lança do soldado. Só, só, só, a-b-s-o-l-u-t-a-m-e-n-t-e só, não imaginava beber gota-a-gota aquele cálice. Ao fim da madrugada, minha voz foi um grito tão intenso que despertou o sol no horizonte e o público que acompanhava a via crucis petrificou-se com a “interpretação” tão perfeita e emocionante daquele jovem que, na verdade, desesperado, sofria, pensava em sair dali e já questionava sua própria fé: - MEU DEUS, MEU DEUS, POR QUE? POR QUE? POR QUE ME ABANDONASTES?
Os meus olhos míopes, sem óculos (exigência daquilo que teoricamente seria um personagem), viam com tamanha nitidez que não desejo nem aos que me odeiam tal dádiva. Ouçam: ao homem é dada a dose certa de miopia para que ele sobreviva, pois ver com acuidade, em demasia, é estar sempre a mercê das paisagens insólitas que vão se tecendo sob os olhos e que cegam pela luz.
Como já disse, jamais faria esse “papel” outra vez: já crucificado, olhei de cima e vi minha mãe, também uma Maria, dentre a multidão, seu sofrimento não era cenográfico, suas lágrimas um oceano de ausências, seu olhar fúnebre velava um filho que des-nascia publicamente pelas faltas alheias. Àquela altura a minha dor não era interpretação... A solidão mais árida trespassou meu corpo na lança do soldado. Só, só, só, a-b-s-o-l-u-t-a-m-e-n-t-e só, não imaginava beber gota-a-gota aquele cálice. Ao fim da madrugada, minha voz foi um grito tão intenso que despertou o sol no horizonte e o público que acompanhava a via crucis petrificou-se com a “interpretação” tão perfeita e emocionante daquele jovem que, na verdade, desesperado, sofria, pensava em sair dali e já questionava sua própria fé: - MEU DEUS, MEU DEUS, POR QUE? POR QUE? POR QUE ME ABANDONASTES?
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