sexta-feira, 3 de abril de 2009

Corpus Christi

Convidado pelos colegas de um grupo de jovens, uma vez “representei” Jesus Cristo na via crucis. Jamais faria isso outra vez: o peso físico da cruz verídica na qual fui suspenso foi ínfimo ante as dores que via nos olhos das mulheres e homens ao meu redor. A genuflexão diária ante patrões e patroas abriam feridas não só nos joelhos daqueles homens e mulheres, mas em seus corpos gangrenados por uma sobrevida diária que realmente só a fé poderia ainda pô-los de pé. O que era para ser uma representação, tornou-se um drama, principalmente para mim. Cristo, ironicamente, resolveu naquele dia partilhar comigo, um pobre adolescente de 16 ou 17 anos, seu cálice. Disse-me: -Tomai e bebei, este é o meu sangue...
Os meus olhos míopes, sem óculos (exigência daquilo que teoricamente seria um personagem), viam com tamanha nitidez que não desejo nem aos que me odeiam tal dádiva. Ouçam: ao homem é dada a dose certa de miopia para que ele sobreviva, pois ver com acuidade, em demasia, é estar sempre a mercê das paisagens insólitas que vão se tecendo sob os olhos e que cegam pela luz.
Como já disse, jamais faria esse “papel” outra vez: já crucificado, olhei de cima e vi minha mãe, também uma Maria, dentre a multidão, seu sofrimento não era cenográfico, suas lágrimas um oceano de ausências, seu olhar fúnebre velava um filho que des-nascia publicamente pelas faltas alheias. Àquela altura a minha dor não era interpretação... A solidão mais árida trespassou meu corpo na lança do soldado. Só, só, só, a-b-s-o-l-u-t-a-m-e-n-t-e só, não imaginava beber gota-a-gota aquele cálice. Ao fim da madrugada, minha voz foi um grito tão intenso que despertou o sol no horizonte e o público que acompanhava a via crucis petrificou-se com a “interpretação” tão perfeita e emocionante daquele jovem que, na verdade, desesperado, sofria, pensava em sair dali e já questionava sua própria fé: - MEU DEUS, MEU DEUS, POR QUE? POR QUE? POR QUE ME ABANDONASTES?

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