terça-feira, 31 de março de 2009

Sobre a fé

A minha irmã caçula, minha pequena rosa

Tenho uma irmã que sua sede de vida era tanta que, ao nascer, matou, no parto, sua mãe biológica. A vida é mesmo essa crueza bela cuja força de existência é capaz às vezes de subsumir tudo ao seu redor para apenas “ser”.
Sem o amparo maternal e paternal (neste caso por outros motivos), minha avó a trouxe do interior para Salvador, a fim de que ela fosse tratada (hoje tenho a convicção de que ela planejava que adotássemos minha irmã, o que terminou por ocorrer), já que nasceu muito doente. Os médicos, no entanto, sentenciaram sua morte inescapável, que ocorreria, na melhor das hipóteses, em semanas. Ignorante e sábia, como era minha avó, ela não leu os laudos médicos, recusou as determinâncias científicas e, contrariando o ceticismo consensual acerca da vida daquela criança, ela sentenciou através de sua fé: -Você vai viver!
Hoje, após tantos desentendimentos com minha irmã por suas travessuras, compreendo melhor a sua dor existencial de um nascimento homicida que atravessa a carne, dilacera o espírito e não sara facilmente em uma só vida, apesar da acolhida que teve no seio de minha família...
Hoje, nos olhos de minha irmã caçula, minha rosa (com todos os seus belos espinhos), vejo refletida a fé que lhe deu vida. Fé que invejo e para alcançá-la preciso desaprender muitas coisas, para crer sempre que é possível intervir no curso do rio, apesar do fluxo caudaloso das águas.

segunda-feira, 30 de março de 2009

Eu Soul


Hoje não há texto. Seal sussurra em meus ouvidos “Kiss from a Rose” e eu sou apenas som, sou apenas soul, Eu Soul.
Se alguém ainda duvida, acesse o link abaixo e diga-me se não é possível ouvir um silêncio tonitroante que é a beleza mais simples e como silêncio não se traduz em morte:
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sábado, 28 de março de 2009

Desabrigo

A Natália

Há dois anos, alguns dias por semana, durmo na rua. Explico: minha casa são os braços de uma mulher que viaja sempre e leva consigo os bons sonhos que me ninam feito criança na madrugada... Apesar de alegar amar-me sem restrições, ela furta sorrateiramente o travesseiro onde repousa minha cabeça, expondo-me a apnéias e pesadelos abissais. Desabrigado, vou habitando palavras natimortas repletas de ausência, enquanto aguardo o seu-meu retorno para casa.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Reles-ato biográfico ou "Onde os fracos não têm vez"

Acho que por pudor nunca contei a ninguém a história a seguir, que hoje confio, em segredo, a você, leitor. Eu briguei uma vez na escola. Sim, é verdade. Sei que, especialmente para os que me conhecem, parece meio inverossímil, mas acredite em mim, apesar de mesmo eu, talvez por vergonha em excesso, ainda duvidar de minhas lembranças que me descrevem como um Rocky Balboa, como um Jean-Claude Van Damme, como um Jaspion (meu herói japonês predileto) contra as forças de Apolo, de Bolo Young, de Satangôs...
Ri sozinho esta noite, ao lembrar-me não sei se do ridículo da briga, muito distante da construção grandiloquente no parágrafo anterior ou da vergonha desta mancha em meu currículo escolar, agora, quase, ilibado. Para as mentes mais férteis que aguardam a narração de guerras épicas a la Homero, ou as contendas monumentais presentes nos bons filmes do Ridley Scott, ou ainda os efeitos especiais high tech da batalha entre Neo e Sr. Smith (Matrix), lamento decepcioná-los: a briga, longe da crueza e tenacidade de qualquer Pulp Fiction, faria rir o personagem insólito do programa baiano Na Mira que, quando evocado pelo apresentador, grita: “Socorro, meu Deus, eu não quero morrer”.
Tudo, absolutamente tudo, não passou de um empurrão. Xingado por um colega mais velho e muito mais experiente em questões de pelejas, irritado até o último limite, o atingi de forma certeira e o deixei desnorteado, já que nem ele, nem ninguém na turma, esperava a minha reação em plena sala (quando a professora de matemática saiu para fazer não sei o quê): -É a sua mãe! -falei com a entonação de um vate e a coragem de quem sabia que não seria agredido em plena sala. Passado o primeiro momento de surpresa, também fui golpeado pelo imprevisto: -Te pego na saída, ao que retruquei “mentirosamente”: - Não tenho medo de você.
Resultado: a notícia da briga se espalhou, os estudantes do colégio em que estudava e dos colégios próximos saíram todos para aguardar a batalha no fim das aulas e, quando ia embora e olhei sem ver meu oponente, sorri aliviado, achando-me livre... Ledo engano, pois ele, feroz, aguardava-me na esquina onde a concentração da platéia era maior. Meus amigos, prevendo o que aconteceria comigo, o convenceram de que eu, sequer, me constituía um adversário a altura: tomei um empurrão e depois, ignorado pelo meu adversário, fui para casa, feliz por não ter apanhado, mas ensaiando diretos de direita, jabs e ganchos, para que em minhas batalhas imaginárias, impávido, como Muhamed Ali, todos, depois daquele dia, temessem os meus punhos de aço.

Aviso:
Esta confissão se autodestruirá em 10 segundos, portanto, pode ser que ela não esteja aqui, quando você vier visitar-me outra vez: 9, 8, 7, 6, 5...

quarta-feira, 25 de março de 2009

Tempo-Rei

Respeite Tempo. Tenha medo de Tempo: sob seu manto, todo homem é, no máximo, areia sepultada em uma ampulheta-corpo.

Por isso, cedo ensinaram-me a abaixar a cabeça ao passar por sua tenda e sequer olhar em seus olhos. Na sua íris, dizem os entendidos, a ira de todas as eras que acelera os grãos de nossas vidas.

Respeite Tempo. Tome a sua benção ao aproveitar cotidianamente as horas que Ele, generosamente, te dá (ou te tira), pois Tempo virá...

Quando me esqueço de Tempo e fico a passá-lo na imobilidade de coisas vãs, Tempo me passa e meu corpo é pó: nauseio-me de ausências.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Educação pela palavra

A Cabral de Mello Neto

Certa vez cortei-me empunhando a palavra. Em seu manual de instruções, a advertência veemente: “uma faca só lâmina”. Não apenas sangue correu de minhas veias... A palavra coagulou as dores de ontem e as que ainda um dia sentirei, escoando no vão da ferida aberta.
Hoje, desconfiado do gume afiado da palavra, apenas insinuo manipulá-la, finjindo não sabê-la cortante, para quem sabe empunhá-la nas mãos de outros que também sangrem (é preciso sangrar para que o sangue corra fora do curso!), permitindo-me assim singrar os sentidos por entre cicatrizes.

terça-feira, 17 de março de 2009

Ser e estar na madrugada

A Ben, a Pantoja

Na madrugada “gosto de ser e de estar”. Nela, o silêncio ata-me e habita-me, com o maior medo do homem: o mutismo ensurdecedor de sua legião interior, ou seja, como diria Freud, do seu unheimilich (o estranho, íntimo e extremamente familiar que nos constitui, ainda que recalcado, e projetamos em outrem).

Nesse mar abissal de manto escuro, naufragam todas as nossas rotas em um espelho anti-narcísico e contrário aos nossos desejos que nos levam a lugares ignotos, inesperados.

“Ser-e-estar na madrugada” também é cuidar de si, compreendendo que na madrugada toda ira, todo amor, toda lira, toda dor é absurdamente presença no silêncio de um amanhecer que sempre virá, ainda que tarde o dia.

A madrugada chega para anunciar, às vezes, que não, não agora, ainda não é tempo-já de dormir, pois viver é, sobretudo, estar à deriva.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Ogã

Entre o torpor da lucidez,
que me embriaga,
e os machados que carrego por Outro,
meu corpo serve a Justiça
na casa de meu pai

Erguido,
descubro-me zelador do chão em que piso
e dos pés sagrados
que no barracão
escrevem seus caminhos.

quinta-feira, 12 de março de 2009

O café que me toma

Descobri que minha falecida avó reencarnou no aroma do pó de café, pois não havia como reduzi-la, outra vez, para cabê-la em um corpo...
Sábia, como era, apesar de ser chamada de analfabeta (o que são as letras para quem se comunicava com o corpo, para quem escrevia sua vida nas folhas, não as de papel, com as quais operava verdadeiros milagres entre chás, rezas e remédios caseiros), ela não reencarnou no pó, mas no aroma da cafeína exalada um ponto antes da fervura da água (o segredo de um café perfeito) impregnando minhas narinas, meu corpo, minha alma...
Hoje, não mais à tarde como nos tempos de escola, quando preparo meu café noturno, sou tomado pelo torpor sinestésico de sua materna (oni)presença. Tentado, não resisto e peço a sua benção antes de dormir como nos tempos de outrora: -Deus te abençoe.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Black Alien: rap e surrealismo

A René Magritte

Um rapper brasileiro, ex-integrante da banda Planet Hemp, em um gesto freudiano de reversão do tabu em totem assumiu para si a condição de alienígena, autodenominando-se Black Alien. Na impossibilidade de inverter a marca estereotípica que repousava sobre seus caracteres corpóreos (nesse caso fenotípicos), em um jogo escópico ao qual estava submetido e que o fixava desde criança como diferença inferiorizada, esse músico põe em suspenso a designação pejorativa que o afligia, e, claro, as atitudes que como conseqüência vinham com ela, para assumir-se de forma reversa como, assombrosamente, O Outro. Vale salientar aqui a força desconstrutora dessa ação sofisticada que convoca os espectros do unheimlich, possibilitando que esse sujeito se desconheça, para, só assim, lidar com toda a força que produziu em sua vida um poderoso recalque de seus traços étnicos em seu processo de subjetivação e que, agora, como o estranho freudiano, emergem aparentemente como des-conhecidos.Como o surrealista René Magritte provoca a fissura em seus quadros entre as palavras e as coisas, esse rapper grafa, grifa e grafita sobre o corpo a mesma senha que obriga o observador de arte a suspeitar da representação pictórica que ele crê ver nas telas do pintor belga. Em um quadro de Magritte, por exemplo, que traz a imagem de um cachimbo (?) seguido da inscrição “Ceci nést pas une pipe” (Isto não é um cachimbo) o pintor desafia de forma suicida a própria representação, ainda esta seja o sustento de toda uma teoria mimética legitimadora das artes desde Aristóteles. Ora, tanto no gesto do pintor quanto do rapper, a provocação repousa na desconstrução da lógica do sentido, a qual, através de sua relação imediata, aparentemente natural, entretanto etnofalologocêntrica, aprisiona os sujeitos a formas prévias de significação, nada neutras, diga-se de passagem. É contra essa mesma força paralisante e perigosa que se erige boa parte dos escritos de Giles Delleuze, Michel Foucault e Jacques Derrida, só para citar alguns dos chamados filósofos da desconstrução. Ambos os procedimentos, o de Magritte e o de Black Alien, exigem a deseducação de um sistema tradicional de deciframento para que o quadro e mesmo o nome do rapper possam, libertos, enfim funcionar como uma superfície plurissignificante. Em suma, não há desafio mais dilacerante na contemporaneidade do que assumir-se como O Outro, pois o alien, acima de tudo, é aquele que está alheio a, que escapa a toda uma lógica de normalização do olhar, do corpo, transitando fraturado por entre suas identificações fluidas… O alien não pode ser facilmente aprisionado, nem completamente entendido (ele está fora de si) e eis aí a sua potência como alteridade, a qual, mesmo que, muitas vezes, silenciosa, rasura de forma interminável a superfície invisível das relações sociais e de um sistema ortodoxo de construção do saber. Além disso, ele representa, indubitavelmente, o maior desafio para a humanidade, ainda que não “seja” demasiadamente humano, ou não seja historicamente construído como tal…Como educadores, creio que o nosso maior desafio não se coloca apenas em amar o alien (entenda-se por alien toda a alteridade, ainda que aqui eu esteja destacando apenas uma dessas formas alienígenas), mas sim em compreendê-lo na e contra a paisagem gris em que ele se soergue. Tarefa, com certeza, nada fácil, para nenhum de nós.